O que é um gênero? Como ele surge e como se faz? Bem, quando falamos sobre cinema, entendemos por “gênero” um conjunto de características específicas, melhor definidas no conteúdo do que na forma, que dão ao filme uma atmosfera particular em relação aos demais, ao mesmo tempo em que compartilha uma mesma classificação com outros filmes que possuem estas mesmas características. Ao contrário do que se possa pensar, um único filme não pode ser responsável sozinho pela criação de um gênero, pois depende de outros que sigam sua mesma linha para juntos formarem um grupo que, aí sim, podem ser classificados como parte de um todo por meio de vários critérios.
Obviamente, existem filmes que compartilham características próprias de mais de um gênero. Exemplos disso são as comédias dramáticas – como O Show de Truman (The Truman Show) e Cyrus: Não se Meta com Minha Mãe (Cyrus) –, as ficções científicas de terror – como Alien: O Oitavo Passageiro (Alien) e A Mosca da Cabeça Branca (The Fly) – e os suspenses de ação – como Intriga Internacional (North by Northwest) e O Código Da Vinci (The Da Vinci Code). Enquanto alguns diretores se consagram a partir de um gênero específico (embora façam outros tipos de filme) – como é o caso de Alfred Hitchcock (suspense), Charlie Chaplin (comédia) e John Ford (faroeste) – outros se consagram justamente por sua grande preocupação em não ter seus filmes enquadrados em classificações deste tipo, como é o caso de Andrei Tarkovsky, diretor de O Espreitador (Stalker).
O Espreitador é um filme russo de 1979 que conta a história de uma região onde supostamente haveria caído um meteorito vinte anos antes. Após esse acontecimento, o local adquiriu estranhas características, passando a ser chamado de Zona. Boatos locais afirmam que, dentro da Zona, existe um lugar específico chamado Quarto, onde qualquer desejo humano é realizado. Várias tentativas de se aventurar por essa região foram fatais, então o local foi isolado pelos militares para impedir a visita de civis. O filme acompanha a jornada de três homens por essa região: o Professor, o Escritor e um guia. Este último é chamado de Espreitador, pois já tem certa experiência em se locomover pela Zona com razoável segurança, tendo conduzido clandestinamente várias pessoas que desejavam visitar o local em busca da felicidade.
Tomando por base esta sinopse, poderíamos facilmente encaixar esse filme no gênero de ficção científica. A criatividade da história certamente levaria centenas de outros diretores a dar asas à imaginação junto ao departamento de arte no desenvolvimento de um cenário futurístico e extravagante para a Zona, além da criação de equipamentos, figurinos e efeitos visuais bem característicos dos filmes desse gênero. Entretanto, Andrei Tarkovsky preferiu seguir outro caminho.
A Zona é um lugar estranho sim, mas com elementos que todos podem reconhecer facilmente: grande vegetação, muros quebrados, objetos jogados, etc., proporcionando um clima perfeito de abandono e potencial perigo. A jornada dos personagens nesse local é mais do que uma aventura de correria, tiros e explosões com inimigos explícitos. É uma viagem cautelosa por uma região que exerce uma hostilidade tensa durante todo o filme sem que precise reagir fisicamente a nenhuma ação dos personagens.
É também uma jornada interna de cada um desses homens, que se deixam conhecer pelo expectador por meio de um curioso e contraditório sentimento de segurança, privacidade e abrigo que essa região parece lhes oferecer. Isso nos faz perceber como o mundo lá fora é aparentemente mais hostil do que a própria Zona, fato que pode ser evidenciado pela genial fotografia do filme, que alterna de um "preto e branco amarelado" (como uma foto antiga) quando estão fora da Zona, para colorido quando entram na região.
Se em Solaris (Solyaris), sua obra mais famosa, Tarkovsky ainda se prende à essência do gênero de ficção científica, em O Espreitador a recusa é total. Como o próprio diretor fala em seu documentário para televisão Tempo de Viagem (Tempo di Viaggio), ele não ficou muito satisfeito com o resultado final de Solaris justamente por não ter conseguido se desvencilhar do gênero tanto como fez posteriormente em O Espreitador. Talvez “recusa” não seja a palavra certa para definir o que Tarkovsky pretendia fazer, mas sim “superação”. Ele não recusa o gênero, não o nega, pois escreve uma história de gênero, mas consegue superá-lo na forma de contar essa história.
Portanto, para você que não tem preguiça de assistir a um filme longo, monótono, pouco convencional e que revela bem a sensibilidade artística de quem está por trás das câmeras, desejo um bom filme!
3 comentários:
Interessante a sinopse do filme. Nunca tinha visto nada desse diretor, mas 2 filmes me chamaram a atenção, o Espelho e o Sacrifício. Os colocarei na lista para ver.
Essas postagens de cinema do Apontarte estão sendo de grande valia!!
Gostei da explicação sobre gênero e da sinopse tão bem elaborada.Já to baixando "O Espreitador" e outros citados na postagem:P
E no link que fala sobre o diretor, tem uma sugestão de leitura de um livro escrito pelo próprio Andrei Tarkovsky.Quem quiser baixar, segue o link -> http://pt.scribd.com/doc/7168649/Andrei-Tarkovski-Esculpir-o-Tempo
;)
Interessante a explicação sobre a ideia de gênero no cinema. Inevitavelmente fiz relação com a teoria literária e a definição de gêneros literários e, como era de se supor, são conceitos que se aproximam bastante.
Não sei, mas lendo teu texto - não só esse, na verdade - tenho conseguido fazer muitas relações entre literatura & cinema. O que ao meu ver é muito bom, principalmente devido a ideia do blog...
Bom, mas um filme pra lista infindável...
(:
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