segunda-feira, 27 de junho de 2011

Rubem Fonseca e "O cobrador"


A arte dos contos de Fonseca é retesar a corda das palavras para que expressem o vazio do mundo, a antipatia dos indivíduos pela espécie: neles se mata e se destrói por inércia, se trepa por inércia
Tomás Eloy Martinez*


Homem negro, pobre, sem dentes, cheio de cicatrizes e sem escolaridade decide cobrar tudo aquilo que a sociedade lhe deve: Eu não pago mais nada, cansei de pagar!, gritei para ele, agora eu só cobro! (p. 273). Pode-se dizer que, sucintamente, este é o enredo do conto O cobrador, publicado no livro homônimo de Rubem Fonseca em 1979. Mas tolo é aquele que não compreende o quanto que resumos, sínteses, sinopses, limitam quaisquer obras. O cobrador é muito mais que isso.

Marginalizado em todos os sentidos, o narrador-personagem, que se autodenomina o Cobrador, é a personificação (mesmo que fictícia) de todas as falhas de uma sociedade que reprime, anula, subjaz, segrega, diferencia e desnivela. A narrativa está centralizada em um conjunto de ações violentas e brutais as quais têm como única razão exigir de todo e qualquer indivíduo, dotado de prestígio social, o pagamento de uma dívida que o Cobrador carrega ao longo de sua existência: a vida que não lhe foi permitida. Isso tudo em um universo impregnado de crueldade e que nos atinge profundamente:

As narrativas fonsequianas possuem esse primor: brincar com a morte e solapar as certezas do sujeito, representando indivíduos em crise existencial, ‘vivendo’ num mundo caótico e sem sentido, tendo como única saída a sexualidade ou a violência levadas ao extremo.**

Como o que apregoa a teoria literária acerca do gênero narrativo conto, O cobrador não nos revela, ao longo da história, qual o passado desse narrador que se rebela – talvez para não adotarmos nenhuma postura inicialmente tendenciosa –; assim como também não sabemos o que acontece com ele após o ponto final. Conto é isso: recorte de uma vida, o qual nos faz pensar em nós-indivíduos e em nós-sociedade. O Cobrador nasce e morre em poucas páginas, mas não sem antes fazer suas cobranças – (de)vidas ou não – a fim de obter tudo aquilo que lhe devem:

Estão me devendo comida, boceta, cobertor, sapato, casa, automóvel, relógio, dentes, estão me devendo (p. 273)

Tão me devendo colégio, namorada, aparelho de som, respeito, sanduíche de mortadela no botequim da rua Vieira Fazenda, sorvete, bola de futebol (p. 274)

Inclui-se aqui o que o Cobrador cobra – perdoem-me a redundância – de nós: cobra-nos reflexão acerca de uma sociedade segregadora e de um tempo tão pós-moderno, de relações tão fluidas, de atitudes tão vazias, de indivíduos tão inertes; cobra-nos incômodo e insatisfação com tal realidade; cobra-nos reação.

Impossível ler O cobrador e continuar sendo a mesma criatura, tão segura de si (?), anterior à leitura.


# Rubem Fonseca: meu incômodo preferido

Descobri Fonseca quando tinha 17 anos. Li O buraco na parede, indicação e empréstimo de um amigo, leitor voraz. E sim, minha vida de leitora mudou completamente.

Lembro de que depois disso, li uns 4 ou 5 livros seguidos dele – sou meio passional assim mesmo (pelo menos no que se refere à literatura e à música). E a cada conto lido, mais Rubem me incomodava, me agredia, me angustiava. Rubem Fonseca me deixa desnorteada e com a respiração suspensa. Gosto do passeio que ele faz entre a erudição, o conhecimento técnico de áreas não tão conhecidas, e a baixeza humana, a linguagem agressiva e ‘pornográfica’, as cenas de violência extrema, bruta e banal, os palavrões, e todas as lacunas existentes em sua produção literária, as quais são portadoras de tantas ou mais angústias que o “dito” fonsequiano carrega. Fonseca é tão bom na arte de dizer quanto na de não-dizer.

Costumo dizer que, no que se refere à literatura, o incômodo é primordial. Busco ler aquilo que me incomoda e agride – é uma relação masoquista mesmo. Livros têm que sacudir minhas convicções, meus limites, minhas bases morais e éticas. Livros têm que me fazer entrar em crise, desacreditar de tudo, inclusive de mim mesma e do que sou. Só assim me reconstruo – até o próximo livro. Rubem Fonseca faz isso, o Cobrador faz isso, a boa literatura faz isso.

Para finalizar, digo apenas: permita-se ler Rubem Fonseca. E se você tiver coragem, ou estômago, comece – caso ainda não tenha lido nada dele – pelo livro O cobrador. Vale a pena.




* Trecho retirado do texto de introdução presente na coletânea de 64 contos de Rubem Fonseca, lançada em 2004 pela então editora das obras de Fonseca, a Companhia das Letras.
** Trecho retirado do artigo, publicado em 2004 na revista Unimontes Científica, “Transgressão, violência e pornografia na ficção de Rubem Fonseca”, de Osmar Pereira Oliva, estudioso da produção literária de Fonseca.
*** Todas as citações do conto O cobrador foram extraídas da edição de 64 contos de Rubem Fonseca (2006).

Sites:

Reclamações, sugestões e xingamentos, por favor, mais abaixo.

domingo, 19 de junho de 2011

"O Guerreiro Silencioso" e a metáfora religiosa

No meu post passado, eu falei sobre a importância da técnica para a produção cinematográfica, podendo parecer que o conteúdo ficasse subjugado a esta. Bem, certamente não é isso o que acontece, e muito menos não foi isso o que eu quis dizer. Por isso, neste post irei deixar um pouco os aspectos técnicos de lado para falar justamente sobre um dos melhores exemplos de manuseio do conteúdo que eu já vi em um filme.


O Guerreiro Silencioso (Valhalla Rising) é um filme dinamarquês de 2009 que, como a maioria dos filmes incomuns, foi lançado direto em DVD no Brasil. A história se passa por volta do ano 1000 A.C. e acompanha um misterioso guerreiro viking escravizado na sua jornada que nunca é sua própria, mas de quem o “possui”. Após ser usado sucessivas vezes como “galo de briga” pelo seu dono, este consegue escapar e matar todos do grupo com exceção de um garoto, que a partir daí o acompanha vagando pelo nada. Em certo ponto, eles se deparam com um grupo de Cavaleiros Templários, unindo-se a eles em troca de comida.

Esse é um daqueles filmes em que o trailer engana muito o espectador desavisado, podendo se tornar uma grande decepção para quem espera um filme de ação ou de guerra medieval. Isso porque a história se detém mais na dramaticidade e na linguagem simbólica do que nos fatos em si. O fato de o guerreiro não falar em momento algum e só se comunicar com os outros através do garoto, que fala como se lesse a mente do guerreiro, pode ser interpretado como uma grande metáfora sobre o cristianismo.

Peço licença agora para expor a minha visão sobre os significados do filme. Eu enxerguei o protagonista como uma representação de Deus, aquele que nunca fala diretamente aos homens e que é dotado de um grande poder (no caso, a força física descomunal do guerreiro) incompreensível para os humanos. Já o garoto, que é o meio por qual o guerreiro se comunica com os outros, pode ser entendido como Jesus, o único que entende e expõe a palavra de Deus para a humanidade.

Em certo ponto do filme, o grupo de cavaleiros, juntamente com o guerreiro e o garoto, chega a um lugar que, para os próprios personagens, lembra o Inferno: um lugar vazio, sombrio, misterioso e silencioso. Isso pode até ser visto como uma referência à catábase ao Hades dos principais heróis da mitologia grega, fato que em tal contexto representa um ritual de passagem, uma necessidade de descer aos confins do mundo e retornar à vida para ser consagrado como herói após tal provação.

Concordo que provavelmente eu tenha “viajado” muito nesta interpretação, e que a intenção dos realizadores pode não ter nada a ver com ela. Porém, esta idéia se mostrou tão constante para mim no decorrer do filme que eu não me atreveria a expô-la aqui se não parecesse fazer muito sentido. Talvez fosse melhor eu expor algumas passagens que exemplificam melhor esta visão – como o final, que talvez seja a passagem mais reveladora e crítica sobre a relação entre os homens e suas crenças –, mas como compartilho da idéia de que quanto menos uma pessoa souber sobre um filme antes de assisti-lo, melhor, então privo dessa infelicidade os leitores que ainda não o fizeram.

Entretanto, o que realmente importa não é esta visão especifica sobre o filme, mas sim o fato de ele permitir este e outros tipos de leitura aos espectadores, dando-lhes a oportunidade de participar ativamente na construção da obra. Para mim, é justamente isso que define uma produção artística de qualidade: algo que, embora encerre algo em si, permite também uma abertura para vários tipos de interpretação e de envolvimentos particulares por parte daqueles que têm contado com ela. Para os que não têm preguiça de refletir sobre uma obra em vez de somente engolir o que já foi mastigado, desejo um bom filme!

domingo, 12 de junho de 2011

"Coração que ama bate, forte como um retumbão" - Fiapo no Dente

Como foi dito no post da Camila, ficou combinado uma parceria entre as postagens de música e fotografia no mês de Junho, e que seriam dedicadas especialmente  ao "Arraial do Pavulagem". 
Cá estou para cumprir o combinado!! \o/

Hoje (12 de Junho) em pleno "Dia dos Namorados", o Arrastão do Pavulagem saiu pelas ruas trazendo alegria, cores e muita música contagiante. 

É este o cenário que vou compartilhar com vocês!

Vídeo do 1º Arrastão do Pavulagem



















E agora uma pequena homenagem ao Dia dos Namorados!!
Obs: As fotos a seguir foram tiradas aleatoriamente, não tenho a informação se os casais abaixo são realmente namorados. :D





#SeLigaNaDica
Perdão!! Mas neste post não selecionei nenhuma dica :( Então vou burlar só desta vez a regra de postar uma dica de fotografia. Mas na próxima com certeza colocarei duas dicas  para vocês!! 


Thay Freitas 
Sentimento Letrado

segunda-feira, 6 de junho de 2011

A gramática e minha literatura

Esse post será meio autoindicativo, mas é que levantarei um ponto que particularmente gosto de escrever: usar de regras gramaticais para fazer literatura.

Primeiro, uma poesia minha, onde, respectivamente, utilizo um tipo de aposto para cada estrofe: enumerativo, recapitulativo, oracional e explicativo.

Agora, sinto

Lembro-me de ti com facilidade:
Uma música que fale sobre saudade,
Uma poesia de amor sofrido,
Uma menina tímida com um belo sorriso,
Uma daquelas lanchonetes por toda a cidade.

Quando vejo uma criança brincando na rua,
Quando escuto sobre uma deusa do candomblé,
Quando vejo uma pele igual a sua,
Quando comungo contigo a nossa fé:
Tudo ao meu redor para ti conflua.

Agora, sinto, desabafo:
Quanto mais ficamos afastados,
Mais sinto falta de tê-la ao meu lado.

Então, desculpe-me, por favor:
Por não estar contigo aonde você for.
Também comungamos o mesmo choro e a mesma dor.

CA Ribeiro Neto

Agora, uma prosa,  onde quero falar da falta de iniciativa da sociedade e, para isso, enfatizo com quase todas as orações na voz passiva:


Agentes na passiva



Os impostos são pagos pela gente. Os políticos são eleitos pela gente. Os deveres são exercidos pela gente. Mas nosso direitos não são utilizados pela gente. E isso deveria ser mudado pela gente. Mas a gente não tem voz. A gente mal age. Somos agentes na passiva.
Os preconceitos são alimentados pela gente. As chacotas são ridas, e propagadas, pela gente. As corrupções são compactuadas pela gente. Do mesmo modo que as filas são furadas pela gente. As cervejas dos guardas são pagas pela gente. As más educações são proferidas pela gente. Os acentos aos idosos não são oferecidos pela gente. As crianças e os velhinhos não são respeitados pela gente. As crianças não são educadas pela gente. As pobrezinhas são presas pela gente. Pânico e stresse são passados a elas pela gente. Elas não são escutadas pela gente. Nossas crianças estão sendo excluídas da sociedade pela gente.
Os problemas ao nosso redor não são reclamados pela gente. Grupos organizados não são formados pela gente. Setores da sociedade não são mobilizados pela gente. Líderes não são acompanhados pela gente. Assim como organizações populares não são lideradas pela gente. A gente se omite. A gente aceita tudo. A gente não grita. Somos agentes na passiva.


CA Ribeiro Neto

sexta-feira, 3 de junho de 2011

♫♪ O Arraial que é do sol, o Arraial que é da lua ♫♪


O bom de poder falar sobre música neste blog é que eu posso passear por inúmeros cantores, artistas e gêneros musicais. Óbvio que o único e exclusivo critério para isso é a minha arbitrariedade (Nice!). E muito daquilo que escolho falar pra vocês tem haver com o que estou ouvindo, em demasia, no momento. E o momento agora é um dos mais aguardados, por esta que vos chateia escreve, no ano: Quadra Junina.

Não sei como funcionam as coisas praí nas bandas onde vocês moram, mas aqui em Belém, apesar de todos os problemas e dificuldades, a tradição junina ainda se mantém. Pode-se dizer que de duas maneiras diferentes: a primeira é a disputa entre as quadrilhas juninas que ocorre ou de forma independente (tipo, alguns bairros e associações se organizam e fazem apresentações nas ruas mesmo) ou por meio da prefeitura de Belém que organização uma espécie de “campeonato”; a segunda maneira (e é a que de fato interessa neste post) é as apresentações de bois-bumbás que também ocorrem nas ruas da cidade.

Aí chegamos ao ponto tããão esperado por mim e por uma quantidade de gente tão ou quase maior do que todos os remistas e bicolores reunidos no Mangueirão  em dia de RExPA: Domingos de Junho. (todos comemora! \o/)

Falar em quadra junina em Belém é falar de Arraial do Pavulagem: um grupo musical que surgiu em 1987 e que sai pelas ruas Belém, sempre em três momentos ao ano (no início do ano, próximo ao carnaval, no chamado Cordão do Peixe-boi; em junho, na quadra junina, durante os 4 domingos; e em outubro, na véspera do Círio, no Arrastão do Círio) numa espécie de cortejo, cantando e tocando carimbó, boi-bumbá, xote bragantino, retumbão, quadrilha e outros estilos musicais característicos da região.

Em 24 anos de existência, o Arraial tornou-se Instituto. E isso significa que, enquanto Instituto, é preciso oferecer ao público oficinas ou cursos relacionados àquilo que o Arraial do Pavulagem se propõe. Acontece então que, sim, existe a base do grupo musical – formado por Ronaldo Silva, Júnior Soares, Marcelo Fernandes, Rubens Stanislaw, Edgar Junior e Rafael Barros - que se apresenta em shows. Porém, o Arraial é mais que isso: os cortejos ou arrastões são formados e divididos por “setores”: a dança, o Batalhão da Estrela (constituído por mais ou menos 300 pessoas que tocam diferentes instrumentos) e os pernas-de-pau. Uma fotinho pra vocês entenderam um pouco mais. Acontece que qualquer pessoa com o mínimo de coordenação motora pode fazer parte ou do grupo de dança ou do Batalhão da Estrela pra tocar ou do grupo de pernas-de-pau. Para isso, é só inscrever-se nas oficinas que o Instituto oferece sempre algumas semanas antes de se iniciarem os arrastões, em junho. É, mais ou menos, o que o Monobloco (outro grupo de percussão) faz no Rio de Janeiro, só que aqui as oficinas são digrátis (todos os lisos comemora! \o/).

 Aí, eis que chega junho. Durante quatro domingos, a partir das 9h da manhã, começa a concentração das pessoas que sairão no cortejo (dançando, tocando e em pernas-de-pau) e, logicamente, uma multidão de pavuleiros com seus chapéus de palha cheios de fitas coloridas, que acompanham o arrastão que sai da Escadinha, um cais de porto no qual acontece a chegada do traslado fluvial do Círio de Nossa Senhora de Nazaré  no segundo domingo de outubro. Fica ao lado da Estação da Docas, seguindo pela Avenida Presidente Vargas, até a Praça da República, lugar no qual acontece sempre um show do grupo. Mais uma fotinho só que do show pra vocês verem a quantidade de gente que participa disso.

Durante 2h mais ou menos, embaixo de um baita sol junino, um calor dantesco, ambos característicos de Belém, rola muito carimbó, quadrilha, retumbão, xote, lundu, siriá, boi-bumbá, marujada. Coreografia, gente, calor, amigos, risos, fitas coloridas e alegria. Sou suspeitíssima pra falar sobre isso, já que acompanho (junto com minha fiel companheira de todos os arrastões em todos os lugares @lapetit_th) esses cortejos há uns 5 ou 6 anos. Domingos de junho tornaram-se sagrados. E enquanto eu agüentar, lá estarei.

Neste ano, os cortejos começarão dia 12 e acontecerão nos dias 19, 26 de junho e 03 de julho. Desde o início de maio estou numa contagem regressiva. E faltam apenas: 8 dias – e diminuindo \o/.

Por conta disso, esse mês de junho, Thayanne e eu resolvemos fazer posts especiais sobre o Pavulagem. Este é apenas o primeiro.


Reclamações, sugestões e xingamentos, por favor, mais abaixo.