A arte dos contos de Fonseca é retesar a corda das palavras para que expressem o vazio do mundo, a antipatia dos indivíduos pela espécie: neles se mata e se destrói por inércia, se trepa por inércia
Tomás Eloy Martinez*
Homem negro, pobre, sem dentes, cheio de cicatrizes e sem escolaridade decide cobrar tudo aquilo que a sociedade lhe deve: Eu não pago mais nada, cansei de pagar!, gritei para ele, agora eu só cobro! (p. 273). Pode-se dizer que, sucintamente, este é o enredo do conto O cobrador, publicado no livro homônimo de Rubem Fonseca em 1979. Mas tolo é aquele que não compreende o quanto que resumos, sínteses, sinopses, limitam quaisquer obras. O cobrador é muito mais que isso.
Marginalizado em todos os sentidos, o narrador-personagem, que se autodenomina o Cobrador, é a personificação (mesmo que fictícia) de todas as falhas de uma sociedade que reprime, anula, subjaz, segrega, diferencia e desnivela. A narrativa está centralizada em um conjunto de ações violentas e brutais as quais têm como única razão exigir de todo e qualquer indivíduo, dotado de prestígio social, o pagamento de uma dívida que o Cobrador carrega ao longo de sua existência: a vida que não lhe foi permitida. Isso tudo em um universo impregnado de crueldade e que nos atinge profundamente:
As narrativas fonsequianas possuem esse primor: brincar com a morte e solapar as certezas do sujeito, representando indivíduos em crise existencial, ‘vivendo’ num mundo caótico e sem sentido, tendo como única saída a sexualidade ou a violência levadas ao extremo.**
Como o que apregoa a teoria literária acerca do gênero narrativo conto, O cobrador não nos revela, ao longo da história, qual o passado desse narrador que se rebela – talvez para não adotarmos nenhuma postura inicialmente tendenciosa –; assim como também não sabemos o que acontece com ele após o ponto final. Conto é isso: recorte de uma vida, o qual nos faz pensar em nós-indivíduos e em nós-sociedade. O Cobrador nasce e morre em poucas páginas, mas não sem antes fazer suas cobranças – (de)vidas ou não – a fim de obter tudo aquilo que lhe devem:
Estão me devendo comida, boceta, cobertor, sapato, casa, automóvel, relógio, dentes, estão me devendo (p. 273)
Tão me devendo colégio, namorada, aparelho de som, respeito, sanduíche de mortadela no botequim da rua Vieira Fazenda, sorvete, bola de futebol (p. 274)
Inclui-se aqui o que o Cobrador cobra – perdoem-me a redundância – de nós: cobra-nos reflexão acerca de uma sociedade segregadora e de um tempo tão pós-moderno, de relações tão fluidas, de atitudes tão vazias, de indivíduos tão inertes; cobra-nos incômodo e insatisfação com tal realidade; cobra-nos reação.
Impossível ler O cobrador e continuar sendo a mesma criatura, tão segura de si (?), anterior à leitura.
# Rubem Fonseca: meu incômodo preferido
Descobri Fonseca quando tinha 17 anos. Li O buraco na parede, indicação e empréstimo de um amigo, leitor voraz. E sim, minha vida de leitora mudou completamente.
Lembro de que depois disso, li uns 4 ou 5 livros seguidos dele – sou meio passional assim mesmo (pelo menos no que se refere à literatura e à música). E a cada conto lido, mais Rubem me incomodava, me agredia, me angustiava. Rubem Fonseca me deixa desnorteada e com a respiração suspensa. Gosto do passeio que ele faz entre a erudição, o conhecimento técnico de áreas não tão conhecidas, e a baixeza humana, a linguagem agressiva e ‘pornográfica’, as cenas de violência extrema, bruta e banal, os palavrões, e todas as lacunas existentes em sua produção literária, as quais são portadoras de tantas ou mais angústias que o “dito” fonsequiano carrega. Fonseca é tão bom na arte de dizer quanto na de não-dizer.
Costumo dizer que, no que se refere à literatura, o incômodo é primordial. Busco ler aquilo que me incomoda e agride – é uma relação masoquista mesmo. Livros têm que sacudir minhas convicções, meus limites, minhas bases morais e éticas. Livros têm que me fazer entrar em crise, desacreditar de tudo, inclusive de mim mesma e do que sou. Só assim me reconstruo – até o próximo livro. Rubem Fonseca faz isso, o Cobrador faz isso, a boa literatura faz isso.
Para finalizar, digo apenas: permita-se ler Rubem Fonseca. E se você tiver coragem, ou estômago, comece – caso ainda não tenha lido nada dele – pelo livro O cobrador. Vale a pena.
* Trecho retirado do texto de introdução presente na coletânea de 64 contos de Rubem Fonseca, lançada em 2004 pela então editora das obras de Fonseca, a Companhia das Letras.
** Trecho retirado do artigo, publicado em 2004 na revista Unimontes Científica, “Transgressão, violência e pornografia na ficção de Rubem Fonseca”, de Osmar Pereira Oliva, estudioso da produção literária de Fonseca.
*** Todas as citações do conto O cobrador foram extraídas da edição de 64 contos de Rubem Fonseca (2006).
Sites:
By @camilarst
Reclamações, sugestões e xingamentos, por favor, mais abaixo.