Tratando especificamente do cinema, é interessante observarmos como sua evolução histórica e tecnológica influencia diretamente o modo como percebemos a necessidade da imagem em movimento para a construção de uma obra. Até o final dos anos 1920, não havia um modo suficientemente decente de imprimir faixas de som em um rolo de filme. Dessa forma, qualquer diálogo ou narração que precisasse ser representado, o era feito através de textos que vez por outra apareciam na tela. Além disso, durante as sessões de cinema, era costume haver uma pequena orquestra que tocava músicas seguindo a narrativa do filme, tanto para não tornar o evento monótono como para cobrir o incômodo barulho produzido pelo projetor da época enquanto em funcionamento.
Isso quer dizer que os cineastas eram obrigados a lidar com essa deficiência de um modo criativo, esforçando-se por elaborar maneiras de transmitir idéias, sentimentos e um encadeamento narrativo lógico somente através de imagens em movimento, uma vez que era simplesmente inviável e indesejável o uso constante de textos que interrompessem o filme a todo o momento. Para isso, era necessário que a câmera não apenas registrasse passivamente o que acontecia, mas que se movesse de forma a participar da narrativa; era preciso que a montagem não se limitasse a juntar os pedaços de filme, mas que guardasse significados em cada corte, etc. Assim nascia uma linguagem propriamente cinematográfica, e o cinema se consolidava enquanto sétima arte, desvencilhando-se totalmente do teatro, ao qual frequentemente era comparado.
Até que, com o advento do som, a partir do final dos anos 1920, a arte cinematográfica ganhou mais um instrumento de trabalho, mas sofreu uma grande perda da qual nunca se recuperou totalmente. Os cineastas mais puristas condenaram até o fim o uso do som no cinema, pois defendiam que a arte deveria se manter só com o que lhe era essencial. Já outros, receberam de braços abertos a novidade tecnológica, tornando-se reféns dela e esquecendo-se do valor do silêncio. Dentre estes dois grupos, são lembrados aqueles que souberam fazer do som uma ferramenta tão importante na condução narrativa e na construção de significados quanto a imagem em movimento, sem que para isso houvesse prejuízo de nenhum dos dois.
Nesse contexto, enfim podemos apresentar a obra a que este post diz respeito. Begotten é um filme estadunidense de 1991 que conta uma versão macabra e pessimista do mito da Criação. Trata-se basicamente do seguinte: Deus comete suicídio, e deste ato nasce a Mãe Natureza, que por sua vez O masturba e se autofecunda com o Seu esperma, dando origem ao Homem, um ser que sofre simplesmente por existir e ainda é maltratado por outras figuras misteriosas.
Apesar de ter sido feito há somente duas décadas, este filme serve de belo exemplo para o tema aqui proposto. Foi filmado em preto e branco e refotografado – num processo que durou cerca 10 horas para cada minuto de filme – a fim de conseguir o resultado pretendido pelo diretor, que consiste em uma imagem praticamente sem tons de cinza, forçando o contraste entre o claro e o escuro. Isto pode representar desde a simples intenção de fazer parecer um filme tão antigo quanto a própria Criação até um simbolismo para a desilusão humana de que tudo o que existe é o bem e o mal, sem lugar para intermediações.
Quanto ao som, não consiste em diálogos nem narração, mas somente em grunhidos de agonia, respiração ofegante e barulhos naturais de objetos, passos, etc. Essa é uma maneira genial de conciliar o som e a imagem, que trabalham em conjunto para produzirem um efeito perturbador, ironicamente acentuado pelo silêncio.
Portanto, para quem tem estômago forte, senso crítico sobre temas controversos e real interesse em testemunhar o resgate da pureza cinematográfica na atualidade, desejo um bom filme!